Como governos podem impulsionar a inovação em mobilidade

Enquanto esperamos o marco jurídico que não vem, cabe à sociedade e seus diversos atores apoiar as mudanças necessárias

Por Daniela Swiatek*

Um governo inovador, primeiramente, é reflexo de uma sociedade que quer e contribui para que isso aconteça. Qualquer inovação em governo depende prioritariamente de cooperação e integração entre governo e sociedade — aqui incluídos os atores privados de diferentes tipos.

O assunto inovação em governo começou a ganhar ênfase no Brasil por volta de 2013 e 2014, quando foram criados os dois primeiros laboratórios de inovação em políticas públicas do poder legislativo e do executivo no país, respectivamente o LabHacker da Câmara dos Deputados e o MobiLab da Prefeitura de São Paulo. 

Como era comum em laboratórios internacionais, logo buscou-se mapear os obstáculos à inovação e se constatou que a tradicional aversão a riscos dos servidores públicos, encontrada em todo o mundo, tinha um agravante no Brasil: o medo dos órgãos de controle. Os tribunais de contas com suas fiscalizações, nem sempre politicamente idôneas, interferiam no processo de inovação por gerarem temor de uma condenação por contratos irregulares. 

De fato, penalizações por vezes incluíam riscos ao patrimônio pessoal do servidor público. O medo é, assim, inerente e justificável. A forte demanda por uma legislação que protegesse o gestor público que se seguiu é muito apropriada. Assim, por anos, muitos debates em torno da obtenção de segurança jurídica para viabilizar contratos entre governos e empresas nascentes inovadoras, as startups, tomaram o centro da arena.

Ainda assim, governos começaram a experimentar. Em 2015, o Governo do Estado de São Paulo lançou o PitchGov, que permitia testes de inovações com uso da Lei de Inovações (Lei federal 10.973/2004), por meio de convênios sem repasse de recursos às startups. O MobiLab foi pioneiro na contratação de startups com repasse de recursos. Em 2016, com uso da Lei de Licitações (Lei federal 8.666/93), na modalidade concurso público, a Prefeitura de São Paulo celebrou os primeiros contratos de um governo com startups no país. Outros casos se seguiram.

Percebe-se que, a despeito da falta de um arcabouço jurídico próprio, inovações em governo aconteciam, inclusive com contratos envolvendo pagamentos. Elas foram possíveis devido a um desejo político de inovar. 

Nossa cultura organizacional no setor público é muito dependente do líder político. A marcante hierarquia e o “executivismo” (excesso de foco e poder no chefe do poder executivo) fazem com que haja, com frequência, uma absoluta obediência aos anseios do secretário municipal/estadual, prefeito, governador, ministro e presidente. Observamos na literatura internacional que o chamado patrocínio político é crucial para inovação em governos em todo o mundo, porém, no Brasil o peso do fator político parece se sobrepor ao do vazio de legislação. 

Houve avanços no quesito legal, como a atualização da Lei de Inovações (pela Lei federal 13.243/2016), vários estudos de órgãos como IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que ensinam a utilizar os instrumentos existentes, como encomendas tecnológicas e a modalidade de concurso público. Também a própria experimentação de um governo se torna um fator de segurança para outros. O marco legal das startups mobilizou uma ampla gama de atores sociais e encontra-se em discussão no Congresso Nacional. Claro, e força-se enfatizar, que a legislação atual está longe de ser suficiente para provocar inovação em massa, em especial nos governos brasileiros que, em todos os níveis e regiões, carecem de maior capacidade técnica. 

Porém, mantemos o discurso há anos e ele obstrui, de propósito ou não, a articulação dos atores envolvidos para demandar uma mudança no padrão de apoio político à inovação.

A falta de base legal foi usada em muitos casos para se ocultar a falta de base política. Tornou-se a desculpa para se permanecer numa zona de conforto dos mandatários, que em nada dá conforto ao cidadão que em muitos casos se torna refém de serviços públicos caros e ineficientes. Os casos do MobiLab, PitchGov(s) e outros reforçam que governança, atualmente, é mais importante que arcabouço jurídico.

A relevância da governança para inovação em governos se dá em qualquer política pública, mas no caso da mobilidade, há uma pressão acentuada por conta da extensa prestação privada de serviços. Estes são oferecidos por concessionários públicos ou pelas muitas startups de mobilidade que surgiram diretamente aos cidadãos. Todos eles impactam intensamente no ambiente urbano.

Ou seja, a regulação dos serviços de mobilidade, inovadores ou não, é uma necessidade urgente, frequentemente deixada de lado, para ser feita “um dia”. Mas a vida cotidiana não espera, e de tal modo, caos evitáveis vão sendo criados. Eles seriam possivelmente aliviados por uma regulação produzida em diálogo entre os atores, com ampla inclusão do cidadão/usuário, e informadas por evidências (largo uso de dados compartilhados, integrados e analisados conjuntamente). 

Os governos não podem fazer a regulação sozinhos, as empresas não podem analisar dados sozinhas e decidir sozinhas. Estamos falando do espaço urbano que pertence e que é usado por todos nós, uma miríade de atores. Uma andorinha só não faz verão, e com um ator só não teremos uma boa regulação.

Desta forma, um amplo diálogo pode fortalecer e expandir os benefícios da inovação em mobilidade. E aqui os governos podem e devem ser os protagonistas pois a eles cabe a defesa do interesse público e a instituição de regulação. Neste contexto, não é adequado se esconder atrás de desculpas como a falta de arcabouço jurídico ou de laboratórios coloridos e cheios de post-its e vazios de patrocínio político. Há de se ter vontade política.

Para sairmos desse impasse, é preciso que todos os atores envolvidos admitam que não são autossuficientes e precisam uns dos outros. A pressão social deve ser o impulsionador de uma nova ação política. Não é só o governo em sua crise fiscal e política que precisa de apoio da sociedade para sair do buraco (e lembrando sociedade é muito mais que pedir parcerias com empresas para financiar suas ineficiências). A sociedade precisa, e muito, de um governo que seja forte o suficiente para não ser onipresente. Um governo aberto, que construa a confiança dos atores para compartilhar dados e construir coletivamente regulações, que não se abstenha de regular concessionários e startups, mas que também não impeça a inovação e os serviços inovadores da iniciativa privada, desde que estes melhorem a vida de todos nós. 

*Daniela Swiatek é especialista em inovação governamental e mobilidade urbana, foi cofundadora e coordenadora executiva do MobiLab, o Laboratório de Inovação em Mobilidade do Município de São Paulo, onde liderou a aquisição pioneira no setor público que permitiu ao governo fazer negócios com startups. É pesquisadora das universidades Harvard (EUA) e Newcastle (Reino Unido) e da Academia de Ciências da Polônia. É doutora pela Universidade de Economia e Negócios de Viena e mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Foi chefe de gabinete interina da agência reguladora de trânsito de São Paulo e trabalhou em governos municipais, estaduais e federal no Brasil e em projetos de pesquisa internacionais financiados pela União Europeia.

Compartilhe!