Brasília: a cidade planejada para carros tem a maior malha cicloviária do país
Mas ciclistas afirmam que ainda falta muito para ser uma cidade segura para a ciclomobilidade

Por Fernanda Bastos*
Inaugurada em 1960, a capital federal foi projetada com duas extensas vias cortando os seus eixos norte e sul, leste e oeste, conhecidas como Eixo Rodoviário ou “Eixão” e Eixo Monumental.
“Isso propicia a fluidez, a velocidade, Brasília foi projetada para o carro. A cidade é desenhada com a forma que remete a um avião e com o coração sendo uma rodoviária. Os dois grandes elementos da cidade levam a gente a pensar na questão da velocidade”, destaca a professora de urbanismo da UnB, Mônica Gondim.
Brasília, que nasceu carrocrata, é atualmente a cidade com a maior malha cicloviária do país, com 553,95 km de extensão, segundo a Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal (Semob). A capital conta com mais de 3,05 milhões de habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A extensão supera a de cidades como São Paulo (535,9 km), com mais de 12,3 milhões de pessoas e do Rio de Janeiro (450 km), com mais de 6,7 milhões de habitantes, percorrendo as 28 regiões administrativas do Distrito Federal. Mas para os ciclistas, ainda falta muito para consolidar a valorização da mobilidade ativa (a pé e bicicleta) na região.
É o que diz a professora de educação física, Verônica Santos da Hora, 23 anos, que utiliza a bike todos os dias para ir ao trabalho. “São 15 km de distância da minha casa (Asa Sul) até o meu trabalho (Setor de Clubes Sul). Faço em 20 minutos, mas durante o percurso, só pego no máximo 2 km de ciclovia”, destaca. Segundo a ciclista, o trecho está repleto de buracos e não está bem preservado.
Verônica, que já sofreu quatro acidentes pedalando, dois em ciclorrotas e dois em vias, enfatiza não só a necessidade de melhorias nas ciclovias, mas também a de mudança do pensamento de compartilhamento, por parte dos motoristas e motociclistas, da cidade e das vias.
O alto custo de vida no Plano Piloto, onde se concentra a maior parte dos empregos, faz com que milhares de pessoas morem longe de onde trabalham e com isso precisem vencer alguns quilômetros diariamente pelas pistas da região. Nos horários de pico, as vias são completamente tomadas por carros, motocicletas, ônibus e bikes, que disputam um espaço limitado e nem sempre bem ordenado. Como o uso do carro não está ao alcance de todos e a qualidade do transporte público frequentemente deixa a desejar, a bicicleta se apresenta como alternativa importante.
“Direito à cidade não é só sobre minha locomoção. Direito à cidade é conseguir transformar a cidade a partir da minha necessidade, da minha vivência e do meu ponto de vista histórico”, explica Max Maciel, coordenador pedagógico da Rede Urbana de Ações Socioculturais (RUAS). A organização visa repensar a utilização do espaço público das periferias para integração dos jovens na comunidade.
Morador de Ceilândia (região administrativa do DF), Max ressalta a fragmentação da cidade e a forte estratificação socioespacial desde a sua construção. “É importante lembrar que Brasília foi um local projetado para ser desigual. Os acampamentos dos trabalhadores que a construíram eram concentrados a 30 km ou 40 km de distância do Plano Piloto. As regiões administrativas foram historicamente construídas para serem cidades dormitório”.
Um dos acampamentos de trabalhadores, que resistiu há 60 anos e hoje fica perto do Eixo Monumental, é a Vila Planalto. Moradora da região e ciclo entregadora de documentos no Distrito Federal, Aline Henning D’Antonino, 26, ressalta a importância do direito à cidade para realizar seu trabalho.
“Falta compartilhar mais o pensamento que a cidade é de todos. Isso pode ser um dos fatores para o elevado número de acidentes com ciclistas”, enfatiza Aline.
Ela, que começou a andar de bicicleta depois de ser mãe e descobriu uma relação de autonomia e independência com a cidade, acredita que há dois principais problemas na malha cicloviária do DF: falta de sinalização e descontinuidade das ciclovias.
“Muitas vezes a ciclovia coloca o ciclista em um lugar de ponto cego e, além disso, é preciso a conexão da malha cicloviária para outras regiões”, conta Aline. A ciclista vê como soluções, a educação no trânsito, a separação física entre a ciclovia e a rua e/ou a redução da velocidade nas vias.
É o que a Semob propôs no Plano de Mobilidade Ativa de 2020, que visa orientar e coordenar as ações governamentais voltadas à mobilidade a pé e à ciclomobilidade.
Os principais objetivos do planejamento são melhorar a infraestrutura de mobilidade para a população que se desloca a pé ou por bicicleta, incentivar a migração dos usuários dos modos motorizados para os modos ativos de deslocamento e melhorar e fomentar a integração entre os modos ativos e o transporte público coletivo.
Em 2020, durante os meses de pandemia, 46,6 km de ciclovias foram concluídas. Talvez o sonho de Aline possa se realizar um dia no Distrito Federal. “Eu imagino um futuro com pistas compartilhadas em todos os locais. A bike é um veículo como qualquer outro e essa mudança de mentalidade só se desenvolve”, finaliza a ciclista.
Ciclovia x ciclofaixa x ciclorrota
Ciclovia: via separada fisicamente da circulação de veículos motorizados e de pedestres por meio de canteiros, muros, grades ou meio-fio.
Ciclofaixa: faixa separada da circulação de veículos motorizados e pedestres apenas por meio de sinalização, como pintura no chão, tartarugas ou olhos de gato.
Ciclorrota: caminho, geralmente sinalizado, recomendado para ciclistas.
*Fernanda Bastos foi uma das participantes do Lab 99 + Folha de Jornalismo 2020, oficina online para jovens jornalistas que selecionou 30 nomes entre candidatos de todo o País para receber mentoria dos jornalistas da Folha de S. Paulo, participar de imersão com especialistas e produzir especial da Folha sobre mobilidade urbana