Momento de inflexão do transporte público é chance de redefinir seu papel

Por Fabio Hirschhorn*

Desde os anos 80, reformas regulatórias introduziram práticas típicas do setor privado na administração pública. Tornaram-se comuns o uso de contratos, metas de performance e a criação de agências especializadas, por exemplo. Valores como eficiência e eficácia passaram a ter primazia como objetivos na organização e produção de serviços públicos. 

Com relação ao transporte público, essas reformas se caracterizaram pela introdução de elementos de competição pelo mercado ou no mercado. No Reino Unido (exceto Londres) e em Santiago, por exemplo, os serviços de ônibus foram desregulamentados nos anos 80, permitindo que empresas operadoras de transporte tivessem maior liberdade na definição das características de seus serviços. Enquanto isso, na capital inglesa, iniciava-se na mesma época o uso de concessões baseadas em concorrências públicas, um modelo pouco depois seguido por países escandinavos. Em São Paulo, mudanças regulatórias levaram à criação da SPTrans em 1995 para gerir o transporte público municipal, substituindo a antiga operadora municipal CMTC, cujos ativos foram então privatizados. No setor ferroviário, o Japão introduziu em 1987 elementos de liberalização, permitindo que outros operadores, além do incumbente, pudessem ter acesso ao mercado, e de regulação por desempenho (yardstick competition), enquanto no Reino Unido, em 1994, o governo passou a usar concorrências públicas (sistema de franchising).

Em todos esses casos e outros, reformas continuaram e continuam acontecendo. Novos tipos de contrato foram desenvolvidos, formas de divisão de responsabilidades entre autoridades e empresas operadores foram experimentadas, variados esquemas de remuneração e incentivos criados etc. No entanto, a grande maioria dessas reformas partem da mesma premissa e mantêm o paradigma de priorização de eficiência como objetivo público central. 

Porém, pelo menos três fatores indicam que estamos em um ponto de inflexão na história, sugerindo a possibilidade de mudanças mais substanciais na maneira em que entendemos a função dos serviços de transporte público e na forma de organizá-los. 

Em alguns casos houve efeitos positivos como redução nos custos de produção, aumento de produtividade e, consequentemente, redução dos gastos públicos com subsídios. Ao mesmo tempo, em muitas cidades nota-se problemas como aumento no preço de tarifas, serviços de pior qualidade e redução da demanda. Problemas de acesso ao uso de transporte público também se tornaram mais frequentes e pessoas de menor renda e moradores de periferias tendem a ter menor acesso a oportunidades de trabalho, lazer e serviços públicos.

Tendências comportamentais e tecnológicas alteram nossa visão sobre o ato de viajar. A maior preocupação com a crise climática, novas gerações com menor interesse na aquisição de carros, ou mesmo novos modelos de serviço como ridesharing são alguns exemplos. Novas fórmulas e instrumentos mais flexíveis de política pública que possam se adaptar mais facilmente a novas demandas são necessários.

Por fim, a chegada do COVID-19 parece ter escancarado de vez alguns problemas em nossos sistemas de transporte público. A crise de demanda associada à pandemia praticamente colapsou sistemas dependentes, em grande medida, das receitas tarifárias. Governos de muitos países intervieram no setor com ajudas financeiras milionárias e a resiliência dos atuais modelos regulatórios e contratuais passou a ser questionada. A crise também ressaltou a importância de ampliar as alternativas ao transporte rodoviário, especialmente bicicletas e caminhadas.

A combinação desses três fatores parece de fato anunciar uma janela de oportunidades para mudanças importantes e sugere questões que precisam de resposta. Como dar flexibilidade a contratos entre autoridades públicas e empresas operadoras para que a oferta de serviços possa responder a flutuações de demanda? Como redefinir mecanismos de compartilhamento de risco (especialmente o risco relativo a receitas tarifárias)? Quais novas fontes de financiamento podem ser utilizadas para dar maior segurança financeira ao sistema? A que ponto deve chegar a participação do Estado – veremos uma retomada de sistemas inteiramente geridos e operados por entes públicos? 

Essas questões, ainda que não novas, ganharam novo impulso com a pandemia e estão entre os os principais objetos de pesquisa em universidades e instituições científicas atualmente. O que muda agora é que parece ser hora de examiná-las sob um novo viés, uma mudança de paradigma que permita redefinir o papel do transporte público como um modal mais acessível a todos e melhor integrado com modos ativos de mobilidade. É verdade que mudanças institucionais e regulatórias não são rápidas e muitos anos podem ser necessários para identificar as características e resultados de uma nova trajetória na forma de organizar o transporte público. Sequer sabemos quando a crise atual terminará. De qualquer maneira, é necessário seguir adiante com um esforço de pesquisa e também propositivo desde já. Precisamos criar as bases de conhecimento que nos permitam refletir criticamente sobre que valores, além de eficiência, desejamos promover com o transporte público, e que ajudem a tornar mais transparentes os potenciais trade-offs envolvidos em nossas escolhas de políticas.

*Fabio Hirschhorn é pesquisador de governança, políticas públicas e inovação em mobilidade urbana na Universidade Técnica de Delft na Holanda, com pós-doutorado e doutorado nesses temas pela mesma instituição. Antes disso, trabalhou no Banco Mundial com o desenvolvimento de projetos de transporte urbano e fortalecimento institucional em países da América do Sul. Atuou também como consultor em projetos relacionados a políticas públicas no setor de energia de países na África e Europa, tanto no Banco Mundial como na OCDE.

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